Onze órfãos — o que faríamos para viver?
Conforme narrado por Maria Lúcia Vinhal
SE DEUS tivesse amor mesmo, não teria levado meu pai e agora também minha mãe, em tão pouco tempo!” “Se Deus é todo-poderoso, por que não impediu a morte de mamãe, sabendo que ela deixaria no mundo 11 órfãos?”
Repetidas vezes eu indagava aos meus amigos e parentes católicos a respeito disso, os quais insistiam em dizer que fora a vontade de Deus que papai se suicidou e que, quatro meses depois, mamãe morreu dum ataque cardíaco. Amedrontada e confusa, ficava a me perguntar: “Como irei eu, uma mocinha de 17 anos, cuidar de dez irmãos menores, tendo o mais novo apenas um mês de idade?”
O PASSADO DA FAMÍLIA
Éramos uma família fervorosamente católica. Papai, um professor, fora também tesoureiro e catequista duma capela local, e eu cantava no coral. Tanto ele como eu pertencíamos à ordem religiosa de S. Vicente de Paula. Toda a família participava nas rezas diárias e nas demais atividades da igreja, pois não havia muito mais para fazer na pacata cidadezinha onde vivíamos, no interior de Goiás.
Papai tinha um profundo desejo de aprender e entender a Bíblia, e ele a lia com freqüência, muitas vezes até altas horas da noite. Lembro-me de uma vez em que ele chorou por não conseguir entender as palavras de Jó: “Se pelo menos, me escondesses no scheol [inferno]?” (Jó 14:13, tradução Ave Maria) “Se Jó era servo leal de Deus”, exclamou papai, “por que pediu para ser enviado para o inferno?” Papai tinha outras dúvidas, para as quais não encontrava respostas: Por que sofremos tanto? Será que Deus não se lembra de nós? Chegou a ponto de procurar respostas em algumas das religiões protestantes — mas em vão.
Nossa vida tranqüila e simples foi abalada em 24 de junho de 1974, quando dois primos meus trouxeram-me a desalentadora notícia: “Maria Lúcia, seu pai se suicidou!” Um mau negócio resultou em fracasso financeiro e dívidas, e isso levou papai ao desespero. O choque e a angústia foram demais para o fraco coração de mamãe, e, quatro meses depois, ela também morreu, deixando 11 órfãos desamparados e tomados de pesar.
O QUE FARÍAMOS PARA VIVER?
Na ocasião eu trabalhava num supermercado, ganhando muito pouco. Portanto, com as dívidas que foram deixadas, começamos a sofrer privação, às vezes não tendo nem mesmo suficiente alimento. Vendo a nossa situação, uma colega de trabalho saiu de casa em casa, pedindo alimentos para nós. Embora me sentisse embaraçada, fiquei grata pelo gesto amoroso dela e pela ajuda que recebemos do povo local.
A casa pertencia a mamãe, de modo que pelo menos tínhamos onde morar. Também, após algum tempo começamos a receber uma pequena pensão. Para complementar isso, Paulo, com 12 anos, foi trabalhar num açougue, e Sílvio, com apenas 11 anos, passou a trabalhar de leiteiro. O trabalho doméstico era feito por Lúcia Maria, de 15 anos, e por Maria Aparecida, de 9. Simplesmente não havia jeito de todos os 11 permanecerem juntos, de modo que se decidiu que os 6 menores morariam por algum tempo com parentes. O restante de nós logo se ocupou em procurar enfrentar os problemas do cotidiano.
Havia muitas decisões a tomar, que afetavam a todos nós, e, visto que eu era a mais velha da família, em geral tinha a palavra final. Havia ocasiões em que era difícil para os demais aceitarem minha decisão, visto que eu ainda era jovem. Por exemplo, houve a ocasião em que tentei fazer o Paulo ficar quieto, pois estava fazendo tanto barulho que o restante de nós não conseguia estudar.
“Quem é você para me corrigir?”, respondeu ele. Daí, depois de discutirmos, ele saiu de casa e não voltou naquela noite. Na manhã seguinte, com os olhos vermelhos de tanto chorar, fui procurá-lo, chegando até a pensar em ir à delegacia. Mas, quão aliviados nos sentimos quando Paulo chegou a casa no fim da manhã, sorrindo e despreocupado, tendo passado a noite na casa duns amigos! Tais desentendimentos, porém, foram poucos.
DÚVIDAS PERTURBADORAS
Ainda havia dúvidas religiosas que nos perturbavam. Visto que nossos amigos haviam dito que Deus tinha levado nossos pais, ficávamos imaginando que, se isso fosse verdade, então provavelmente ele levaria o restante de nós, um por um. Assim, sempre que alguém de nós ficava doente, temíamos que era Deus chegando para levar mais um! Isto nos deixava apavorados! Ademais, tínhamos sido ensinados de que a alma duma pessoa que se suicida vai para o inferno, e eu me perguntava: ‘Será que o papai está sofrendo nas chamas do inferno?’ Quando perguntava sobre isso ao nosso sacerdote, ele não respondia. Isto deixou-me muito infeliz e com dúvidas a respeito da minha religião.
Como membro da ordem vicentina, ainda coletava dízimos para a igreja. Quando visitei certo homem, ele me perguntou para que seria usado o dinheiro e também qual era a base bíblica para se cobrar o dízimo. Eu não soube responder-lhe. No mês seguinte, quando o visitei, ele suscitou as mesmas perguntas. Portanto, decidi perguntar ao sacerdote.
“É para cobrir as despesas da igreja”, respondeu ele.
“E qual é a base bíblica?”, insisti.
Não tive resposta. Comecei a chorar, sabendo que não poderia responder à pergunta daquele senhor. Além disso, o nome dos que contribuíam era lido em voz alta na reunião da sociedade vicentina, com elogios para os que haviam dado muito. Mas, imagine como me sentia ao ouvir meu nome ser lido em voz alta quando eu não pudera dar nada — e isso era mencionado diante de todos!
Tudo isto só contribuiu para minha desilusão. Também, olhando para o passado, embora apreciássemos muitíssimo a ajuda material que recebemos nas semanas que se seguiram à morte da mamãe, vejo que todos os rituais na igreja contribuíram pouco para me ajudar a enfrentar a responsabilidade de prover instrução moral à nossa família.
AS PERGUNTAS SÃO RESPONDIDAS
Seis meses após a morte da mamãe abriu-se o caminho para obter a resposta às minhas perguntas. Certa senhora, de nome Yolanda, visitou meu local de trabalho, oferecendo um estudo bíblico domiciliar gratuito a um colega de trabalho. Ela se identificou como Testemunha de Jeová. Ouvindo a palestra, fiquei fascinada com o título do pequeno livro azul que ela ofereceu, A Verdade Que Conduz à Vida Eterna.
Visto não ter condições de comprá-lo, um colega me deu mais tarde um exemplar de presente.
Em casa eu devorei o livro, e, alguns dias depois, quando me encontrei novamente com a dona Yolanda, supliquei-lhe: “Dê-me seu endereço que eu mesma irei à sua casa para fazer aquele curso bíblico que a senhora prometeu.” E quantas perguntas eu tinha! O que mais me impressionou no estudo da Bíblia foi a forma como ela respondia às minhas perguntas, usando nossa própria Bíblia — justamente o que faltara quando anteriormente eu fizera perguntas ao sacerdote.
Um texto que tocou bem fundo no meu coração foi João 5:28, 29, que reza: “Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que estão nos túmulos memoriais ouvirão a sua voz e sairão.” Lúcia Maria e eu choramos de alegria diante da perspectiva de ver novamente a mamãe!
“Mas, que dizer do papai? Está ele sofrendo no inferno?” Estas eram perguntas que requeriam resposta. Que alívio foi aprender que o inferno é a sepultura comum da humanidade, e que ninguém ali está sofrendo! Isto também respondeu à pergunta inicial do meu pai a respeito de Jó pedir para ser escondido no inferno. Aprendemos também que as perspectivas de vida futura do papai estavam nas mãos do grande Juiz, Jeová Deus. Mas, pelo menos ele não está em tormentos! — Eclesiastes 9:5, 10.
O restante da família, um por um, também começou a estudar a Bíblia com outras Testemunhas. Quão gratos somos pela bondade e pela paciência delas ao ensinar-nos as verdades da Bíblia! Aprendemos por que Deus permite a iniqüidade, e que ele não se esqueceu de nós. Descobrimos também que a Bíblia possui excelentes conselhos para nós quanto a moralidade, honestidade, respeito para com a autoridade, e sobre como devemos tratar uns aos outros. — 1 Coríntios 6:9, 10; Hebreus 13:17, 18; Romanos 13:1, 2; Mateus 7:12.
Estávamos resolvidos a aplicar as coisas que aprendemos e fizemos entre nós um “pacto” de que, se um errasse, outro o corrigiria. Por exemplo, o Paulo começou a mostrar interesse por “forrós” (bailes), onde havia muita bebida. Passado algum tempo, e com o conselho correto, este problema foi superado e ele passou a demonstrar uma atitude mais séria. O Silvio, um ano mais novo que o Paulo, de início não levou a sério o estudo da Bíblia, e só ia conosco para as reuniões no Salão do Reino porque nós o obrigávamos a ir. Mais tarde, com o progresso do nosso estudo da Bíblia, ele começou a demonstrar profundo desejo de servir a Deus e de assumir responsabilidades. Ele diz que o que o ajudou foi o encorajamento recebido dos membros da congregação.
NÃO SOMOS MAIS “ÓRFÃOS”
Como família, sentíamos que as palavras de Jesus em Marcos 10:29, 30 tinham significado especial para nós: “Ninguém abandonou casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai . . . pela causa das boas novas, que não receba cem vezes mais agora, neste período de tempo, casas, e irmãos e irmãs e mães.” Sim, temos agora muitos “irmãos e irmãs, e mães” em sentido espiritual.
Dona Yolanda, por exemplo, não só nos ensinou a Bíblia, mas também passou horas nos ensinando a cuidar melhor da casa, a cozinhar, e a lavar e passar roupas. Não fossem os conselhos “maternais” dela, não sei o que teria sido de todos nós. Os irmãos cristãos da pequena congregação (cerca de 20 pessoas ao todo) também estavam atentos às nossas necessidades. Até fizeram arranjos para consertar a nossa casa!
Alguns dos nossos parentes, que até então haviam demonstrado pouco interesse na nossa situação, ficaram perturbados com toda a atenção que estávamos recebendo, e, no dia combinado para começar o serviço de reforma na casa, eles também apareceram. “Vocês, Testemunhas, podem deixar isso por nossa conta”, disseram. “Nós reformaremos a casa.” Ficamos muito surpresos e gratos por receber a ajuda deles. Mais tarde os irmãos vieram e terminaram os reparos elétricos, tornando nossa casa muito mais confortável.
Naturalmente, todo esse envolvimento com as Testemunhas não passou despercebido aos vizinhos, que não queriam que nos tornássemos Testemunhas de Jeová. Certo dia, ao sairmos de casa para ir ao Salão do Reino, o vizinho da frente nos deteve.
“Vocês não irão a essa reunião insistiu ele.
“Por que não?”, perguntei.
“É porque essa é uma religião nova, inventada há pouco tempo. Seu pai morreu católico e vocês hão de viver até a morte na religião católica. Voltem já para casa!”
Embora entendêssemos que ele estava bem-intencionado, não permitimos que este incidente nos desanimasse.
Uma das grandes alegrias que o conhecimento da Bíblia nos trouxe foi a união dentro da família. Estudávamos a Bíblia juntos, orávamos juntos, e, mais tarde, começamos a participar na pregação de casa em casa juntos. Tudo isto nos proporcionou uma unidade de esforço que nunca havíamos sentido antes. Com o passar do tempo começamos a sondar meios de pelo menos um de nós poder participar mais plenamente em pregar a outros.
Até então, Lúcia Maria costurava para a família (e também fazia alguma costura para fora), além de cuidar de boa parte do trabalho doméstico. Fizemos arranjos para que Maria Aparecida aprendesse a costurar e também assumisse uma parte maior do trabalho doméstico, desobrigando a Lúcia Maria duma considerável medida de responsabilidade. Este arranjo tornou possível que Lúcia Maria, em abril de 1978, passasse a devotar a maior parte do seu tempo à pregação como pioneira. Dois anos depois ela foi designada pioneira especial, devotando 140 horas todo mês a ensinar a Bíblia a outros, numa cidade distante, onde estava sendo formada uma congregação das Testemunhas de Jeová.
Já se passaram dez anos desde o trágico ano de 1974, quando parecia que todo o nosso mundo se desmoronara. Mas, como as coisas mudaram! Em vista da melhora da nossa situação, em sentido material e especialmente em sentido espiritual, conseguimos reunir novamente a maior parte da nossa família. Em 1979 Dorinato retornou ao nosso convívio, e, alguns meses depois, consegui a aprovação da minha avó para trazer de volta Dalva e Lourdes. Todos os três fizeram excelente progresso, tendo as duas últimas se batizado em 1980. Quão felizes nos sentimos ao ver a verdade da Bíblia arraigar-se no coração deles!
Depois chegou a vez da Beatriz. A família com quem ela fora morar era católica, e ela os acompanhava na religião deles. Imaginávamos que teríamos dificuldades para conseguir trazê-la para casa. No entanto, para nossa surpresa e felicidade, ela veio para casa em novembro de 1981. Começou um estudo sério da Bíblia conosco e batizou-se em julho de 1982. Agora, ela mesma dá aulas da Bíblia a outros. A mão de Jeová, deveras, não foi curta!
Daí veio a vez do Clodoaldo. Em maio de 1983, finalmente conseguimos trazê-lo para casa, e agora ele participa regularmente no nosso estudo bíblico familiar e também na pregação. Oramos para que tanto ele como Dorinato continuem a fazer progresso, se dediquem e se batizem. O mais novo, o Alexandre, continua morando com parentes. Embora ainda não tenhamos recebido consentimento para trazê-lo para casa, conseguimos fazer arranjos para dar-lhe assistência espiritual regular. No momento ele está desfrutando a leitura do livro Poderá Viver Para Sempre no Paraíso na Terra.
Depois que o Paulo e o Sílvio se batizaram, passaram a tomar a liderança nos nossos estudos bíblicos familiares e nas orações. De fato, visto que o serviço secular do Sílvio lhe proporciona suficiente tempo livre, ele serviu nove meses consecutivos como pioneiro auxiliar. Atualmente, o Paulo goza do privilégio de servir na sede da Sociedade Torre de Vigia em Cesário Lange, SP. Ainda trabalho fora, e dedico o mais que posso ao serviço de Jeová. Nem é preciso dizer que tudo isto tem sido motivo de verdadeira alegria e satisfação para mim após a luta dos anos passados.
Muitas vezes pensamos no que o salmista escreveu no Salmo 127:1: “A menos que o próprio Jeová guarde a cidade, é fútil que o guarda se mantenha alerta.” Se Jeová não estivesse ‘de guarda’ sobre nós, toda a minha vigilância sobre a família provavelmente teria sido em vão.
Tem sido realmente emocionante e um prazer estudarmos, aprendermos e transmitirmos a outros os maravilhosos propósitos de Jeová. Deveras, ele tem sido um verdadeiro Pai para nós, e nos sentimos felizes de nos expressar como Davi, que disse: “Cantai a Deus, entoai melodias ao seu nome; alteai um cântico Àquele que cavalga através das planícies desérticas como Jah, que é seu nome . . . pai de meninos órfãos . . . é Deus na sua santa habitação.” — Salmo 68:4, 5.
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Sete membros da família Vinhal.
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Alexandre, que nasceu pouco antes de sua mãe morrer.
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Minha irmã Lúcia Maria que serve atualmente como ministra de tempo integral no Paraná.